Uma leve infecção ou febre na garganta ocasionou um problema que marcou a precoce vida do estudante Luiz Eduardo Félix, 13 anos, morador de Baía Formosa, a 96 quilômetros de Natal. A consequência da febre reumática que o acometeu foi uma estenose valvar aórtica, problema bem mais grave cuja solução seria um transplante parcial de coração. A cirurgia foi feita em um hospital particular da capital, conveniado ao Sistema Único de Saúde (SUS). 60 dias depois, o pré-adolescente comemora a nova vida. "Antes eu vivia cansado, desmaiava. Tive medo da cirurgia, mas precisava fazer. Queria conhecer a família de quem doou minha vida nova", afirmou ele.
"Luiz chegou bem debilitado a Natal. Não podíamos cuidar do coração dele, e sim dele próprio. Fizemos de tudo para que a cirurgia fosse feita", afirmou o médico José Madson Vidal da Costa, coordenador da instituição que recebeu o garoto na capital, a Amigos do Coração da Criança. A associação recebe mensalmente uma média de 100 crianças de todo o Estado, e consegue realizar entre 12 e 15 cirurgias cardiopatas pela rede pública de saúde. O transplante de Luiz Eduardo foi um deles.
Histórias como a de Luiz Eduardo e da associação que o acolheu tendem a se multiplicar no Rio Grande do Norte. O número de pessoas que recebem órgãos doados só cresce no Estado, que hoje já ocupa a liderança nas estatísticas da região Nordeste. Com 16,4 captações multiorgânicas por milhão de habitantes/ano, o Estado se coloca em 3º lugar nacionalmente, perdendo apenas para Santa Catarina e São Paulo em número de captações de órgãos (ambos beiram 20 doadores por milhão/ano), e ultrapassa a média no país, de 11 captações. Os dados são da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). "Acredito que o Rio Grande do Norte é um exemplo a ser seguido. Santa Catarina e São Paulo levaram uma década para conseguir isso, e vocês o fizeram em pouco mais de dois anos", declarou o presidente da ABTO, Ben-Hur Ferraz Neto.
Os números do RN foram anunciados ontem pela Associação e a Secretaria Estadual de Saúde (Sesap), durante a abertura da Campanha de Doação de Órgãos. Mas o evento trouxe à tona um desafio: como fazer aumentar o número de doações com as limitações do Sistema Único de Saúde (SUS) e a falta de recursos para garantir a continuidade dessas doações? A questão não tem solução simples. "Ainda temos problemas especialmente em infraestrutura e falta de recursos por sermos um Estado pequeno", revelou Rodrigo Furtado, coordenador da Central de Transplantes potiguar, que coordena os dados e as equipes responsáveis pela operacionalização da captação e transplante de órgãos no RN.
Apesar de a Política Estadual de Transplantes ter como objetivo fortalecer os serviços de saúde para garantir à população o acesso a todos os procedimentos relacionados, antes e após o transplante, são inúmeros os desafios que o RN tem a enfrentar no que se refere ao fortalecimento da regularidade dos transplantes de órgãos. "O RN nos surpreendeu, saindo de 3 pessoas por milhãopara 16,4. Para essa conquista houve motivação, houve mobilização", ressaltou Silvano Raia, coordenador-executivo do Comitê Estratégico de desenvolvimento de Centros de Procura e Captação de Órgãos, ligado ao Ministério da Saúde.
Contudo, o coordenador informou que o Estado ainda tem algumas limitações. Uma delas é capacitação de profissionais. Para minimizar esse problema vários médicos da rede pública serão treinados em centros nacionais de referência em transplante. "Quatro deles vão fazer treinamento em Enucleação Nuclear no Banco de Olhos de Sorocaba (SP); seis vão participar, no Hospital das Clínicas (SP), do treinamento de Diagnóstico de Morte Encefálica com aparelhos Doppler Transcraniano; e outro grupo participará de um treinamento para retirada de múltiplos órgãos: coração, pulmão, fígado, rins, pâncreas, córneas, pele e até osso", revelou. Após os treinamentos, dois aparelhos Doppler Transcranianos serão doados à Sesap e a equipe médica estará pronta para novos desafios como o transplante em pessoas queimadas.
O médico e secretário estadual de saúde, Domício Arruda, comemorou as novidades e explicou que verba necessária para fazer aumentar o número de doações é importante. Ele contou que o Estado segue o caminho certo ao apostar na organização do sistema. "Basta organizar logisticamente o sistema. Garantir que as informações sobre doadores vivos ou mortes cerebrais chegarão ao conhecimento da central, motivar a equipe e oferecer estrutura necessária para manter os sinais vitais necessários aos transplantes", afirmou. A equipe que lida com transplantes no Estado é composta por 35 profissionais, entre enfermeiros, assistentes sociais, médicos e especialistas com parte de sua carga horária destinada a procedimentos de transplante, como é o caso de 17 urologistas do Hospital Walfredo Gurgel, o maior captador de órgãos do Rio Grande do Norte.
"Esses profissionais foram treinados no Hospital Albert Einstein e estão habilitados a fazer transplantes", disse Domício. A próxima meta do Governo do Estado é expandir o sistema de captação e doação para o interior. Atualmente apenas o Hospital Regional Tarcísio Maia (Mossoró) e o Hospital Deoclécio Marques (Parnamirim) informam da disponibilidade de potenciais doadores, "mas todos os hospitais dotados de centro cirúrgico teoricamente oferece condições para se fazer captação de órgãos", afirmou o secretário.
Hospital da PM poderá realizar procedimentos
O primeiro hospital da rede própria estadual que poderá realizar cirurgias de transplante deverá ser o Hospital Pedro Germano, que pertence à Polícia Militar. "Prevemos para julho do próximo ano começarmos a fazer esses procedimentos. Nosso hospital passa por uma reforma, e estamos aguardando a contratação de novos oficiais de saúde para a PM. Hoje temos 60 oficiais da corporação, entre médicos, dentistas, farmacêuticos e outros profissionais", afirmou o coronel PM Kléber Cavalcanti, diretor do hospital que, além do quadro próprio, recebe 78 médicos da rede pública estadual para assistir seus pacientes.
Urologista que já realizou aproximadamente 250 cirurgias, Paulo Medeiros atua no HUOL e revela que as cirurgias de transplantes são um desafio, mas representam sua realização profissional. "São procedimentos delicados porque fazemos anostomoses de vasos que permitem a chegada de sangue aos órgãos. Por isso treino é importante, e dedicação também", destacou. Mesmo que alguns transplantes representem sobrevida média de 10 anos a mais na vida de um transplantado, como é o caso dos pacientes renais do urologista, ele afirma que o trabalho recompensa. "Vale a pena observar casos como o de uma criança que eu operei, e que ganhou vida graças ao rim da mãe que ela recebeu".
O exemplo de pessoas como Luiz Eduardo, transplantado citado no início dessa reportagem, demonstram que campanhas de doações de órgãos como a que começa essa semana no Rio Grande do Norte seguem no caminho certo. "As pessoas ganham uma vida nova. Podem voltar a sonhar e fazer as coisas simples que mais gostam", disse Paulo Medeiros. "Hoje em dia voltei a fazer uma das coisas que mais gosto: comer chocolate", revela o garoto Luiz.
Evolução dos transplantes no RN
Como líder regional, o Rio Grande do Norte realizou, em uma década (2002- 2011), 1.800 transplantes de órgãos. "Não é pouco", afirma o coordenador da Central de Transplantes, Rodrigo Furtado. "Contudo, o simples fato de comunicar à família não é suficiente para garantir que o sistema funcionará bem. Temos que fornecer estrutura para captar e transplantar esses órgãos". No último ano, foram realizados 50 transplantes de rins. A perspectiva de 2011 é chegar a 60, mesmo número do total de transplante de córneas feitos até o momento. "Pretendemos zerar a fila de córneas, com 200 pessoas, até o final do ano", anunciou o secretário Domício Arruda (Sesap).
Outra meta da Sesap é retomar os transplantes de fígado e de medula óssea, além de estar apto a fazer transplantes de coração, cuja fila está zerada. De todos esses transplantes, o poder público estadual não realiza nenhum, apenas notifica e faz a captação. "As cirurgias são feitas em hospitais como o Onofre Lopes (HUOL), para o caso dos rins; o Natal Hospital Center, para medula e coração, e algumas clínicas particulares como a Prontoclínica, que realiza as cirurgias de córneas".
Nacionalmente o Sistema Único de Saúde (SUS) é referência. O sistema é o maior sistema público de transplantes do mundo. Cerca de 95% das cirurgias deste tipo feitas no Brasil, de forma totalmente gratuita, são realizadas pelo Sistema Único de Saúde. O Brasil é referência internacional em transplantes por realizar o maior número de procedimentos por meio de uma rede pública de saúde. Ano passado, foram 21.040 cirurgias feitas pelo SUS, quase o dobro da quantidade registrada em 2002 (11.203). E a expectativa é que o número de transplantes realizados este ano supere a marca de 2010.
Fonte: DN Online